O vento varre o pó solto no chão. O sol queima a pele já esfolada pelos grãos dessa areia. O olho arde. O sertão é imensidão. Dá para dizer que também é feminino.
Nascer mulher aqui traz junto uma carga de significados e de expectativas. Da mulher sertaneja exige-se muito: cuidar dos irmãos, da casa, dos idosos. E ela entrega mais. E ela sofre. E ela esquece. E ela segue.
Nas quatro comunidades do sertão do Piauí onde a missão médica montou base, em novembro do ano passado, elas foram maioria. Normal. A mulher vai mais ao médico do que os homens em todo o país.A diferença é que aqui elas precisam vencer a distância a pé, suportar o calor, a sede e a fome.
A médica ginecologista Carolina Zafalon observou o bom nível de cuidado delas com o próprio corpo. “Elas chegam para a consulta cheirosas, maquiadas, com a melhor roupa que possuem… mesmo sem ter banheiro em casa, sem água para tomar banho e com o dinheiro mal dando para a comida.”
Além de examinar e consultar, Carolina preparou uma palestra de orientação sobre a saúde da mulher. A apresentação teve sempre sala cheia. “Capacitar cada mulher a conhecer e identificar sinais de alerta no corpo, a fazer o auto exame do câncer de mama e a monitorar preventivamente o risco do câncer de colo do útero são pequenos passos, mas que significam muito nos povoados mais isolados onde não há presença frequente de um médico.”
No sertão também é notável a liderança feminina na maioria dos lares. Muitas dessas mulheres são chefes de família em idade ainda adolescente. Levadas pelas circunstâncias de uma vida com poucos recursos financeiros, educacionais, de saúde. Nessa terra seca e vasta, seguir é o que resta.
Na equipe de 23 profissionais voluntários, 12 eram mulheres – incluindo as duas idealizadoras. Essa expedição nasceu de uma conversa informal entre duas amigas: a médica, apresentadora de televisão e montanhista (entre muitas outras atividades) Karina Oliani e a empresária Mariana Serra, eleita pela revista Forbes uma das trinta mulheres jovens mais influentes no país em função do trabalho de empreendedorismo social que realiza.
Aquela conversa ganhou o patrocínio das empresas Avon, Roche, Puma, Gente de Montanha, Dharma Project e Mitsubishi e agora transforma para melhor a vida no sertão.
Mulheres do sertão
Josefa Joaquina da Costa Silva, 64 anos.
Já foi a costureira das noivas do sertão. Há dois anos que deixou de costurar “pra fora” porque não enxerga. Veio consultar com oftalmologista e voltou com óculos novinho, montado na hora com o grau indicado pelo médico… Era só sorrisos. “Antes via, nas não conhecia… Agora, dá pra ver a cor da roupa mesmo…” Ela estava guardando dinheiro para ir consultar em Petrolina
Francineide de Araujo Silva,16 anos.
É uma sobrevivente – como todos por aqui. Junto com um irmão mais velho, ela cuida da casa e dos irmãos menores. Na mesma semana ela perdeu o irmão José, “que tinha diabetes e bebia muito” e dois dias depois a mãe, que “morreu de tristeza”. Francineide não tem se sentido bem. Passa os dias dormindo. Tem dores no lado, nas costas, no peito. “É muita dor pra um dia só.” Ela pede coragem e sonha em poder voltar a estudar no ano que vem para “aprender tanta coisa…”
Creciana Pereira de Souza, 24 anos.
Mãe de quatro crianças e cuida do pai, doente. A mãe foi trabalhar na colheita de frutas para exportação, em Petrolina, Pernambuco. Vive na casa de parentes lá e volta só a cada 15 dias. Consegue tirar até quarenta reais por dia. Dinheiro que traz para a família, junto com muitas frutas. A casa onde todos vivem na Serra do Inácio foi construída há três meses com madeira, areia e água, e ainda não tem ligação de energia elétrica. “Sem energia, não dá pra guardar nada.” Para a alimentação dos filhos “hoje só tem arroz. Feijão tá muito caro.”
Milena Pereira Martins, 31 anos.
Líder comunitária no quilombo São Martins. Trabalha com a articulação das famílias para implementar novos projetos e dar continuidade aos já existentes. “Quero trazer conhecimento para a comunidade e melhoria da qualidade de vida para a filha Paloma e as 200 famílias do quilombo. Mas os avanços na saúde ainda são poucos.”
Luzineide da Silva, 29 anos.
Está no sétimo mês da gestação. Em casa tem outros três filhos. E apesar da barriga, todo mês sobe na garupa da moto para fazer a consulta de acompanhamento no posto de saúde, em Betânia do Piauí. Ela nasceu na Serra do Inácio e sempre viveu aqui. O que acha ruim? “A seca.”
Izabel da Silva Macedo, 78 anos.
Mudou com a família para a Serra do Inácio para ficar mais perto da escola dos três netos. Todos estudam. Tem seis anos que ficou viúva, mas não reclama. “A vida é boa… Aqui tem até energia”.
Veja a primeira parte desta reportagem
Suicídio, a dor invisível no sertão