Água. Elemento que é produto e matéria-prima da vida. Chuvas regulares e na intensidade necessária são resultado do ciclo da natureza, geradas pelo equilíbrio perfeito do ecossistema. Quando elas não vem na hora, no ritmo ou na quantidade suficientes, é a vida que sofre. A rotina muda. A economia perde.
Historicamente, as estações de outono e inverno são mais secas. Mas nesse 2020, a estiagem assusta mais no Sul no país. Os prejuízos se acumulam nas lavouras do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná. E o baixo nível dos reservatórios exige soluções alternativas, como aberturas de poços artesianos, distribuição de caixas d’água, cortes no fornecimento e uso de caminhões-pipa para levar água aos moradores de diferentes cidades.
O Paraná está seco. Há quase um ano os volumes de chuva se mantém em até 80 por cento abaixo da média histórica no Estado. Só em junho, a precipitação ficou acima da média na maior parte das regiões. Imagens de embarcações encalhadas no rio Paraná, na fronteira com o Paraguai, e do rio Tibagi mostrando as pedras do leito, se tornando símbolo da estiagem. Em Foz do Iguaçu, o reservatório de Itaipu, foi aberto para liberar água e recuperar a navegabilidade de um dos principais rios do País.
O pior racionamento de água em Curitiba
O Paraná está em situação de emergência hídrica desde o último dia 07 de maio. O decreto assinado pelo governador Carlos Ratinho Massa tem validade de seis meses. Já o rodízio no fornecimento dura cinco meses e pode se prolongar até setembro ou outubro. Agora, em agosto, moradores da capital convivem com intervalos alternados de 36 horas com e outras 36 horas sem água nas torneiras. Ainda assim a META 20, campanha lançada pela Sanepar, Companhia de Saneamento do Paraná, para reduzir o consumo de água em 20 por cento teve pouca adesão, não ultrapassando os 4 por cento de economia geral.
Nas palavras do diretor de Meio Ambiente e Ação Social da Sanepar, Julio Gonchorosky, “o fator preponderante continua sendo a chuva. O rodízio e a redução do consumo potencializam os efeitos da chuva.” Mesmo com volumes de chuva ainda insuficientes, a possibilidade de mudança do rodízio para o modelo ainda mais drástico, que seria o de 24 horas com água e 48 horas sem, está afastado.
Mas há déficit acumulado e os efeitos da estiagem mais severa já registrada no Paraná vem forçando medidas alternativas, que vão muito além de cortes no fornecimento e redução no consumo. Nos últimos meses, obras emergenciais foram realizadas na rede de distribuição e criados novos pontos de captação de água em diferentes cidades.
Em São José dos Pinhais, a instalação de uma bomba flutuante em lagoa formada em uma pedreira passou a incorporar 60 litros de água por segundo ao sistema de captação e tratamento do rio Miringuava, ainda no mês de maio.
Também na Região Metropolitana de Curitiba, obras permitem a captação emergencial na Pedreira Orleans, em Campo Magro, com acréscimo de 150 litros por segundo na Barragem do Passaúna. Mesma solução adotada em cavas de Fazenda Rio Grande e Pinhais.
E o esforço teve continuidade incluindo a transposição dos rios Pequeno e Miringuava Mirim. Num dos sistemas mais importantes da capital paranaense, a captação caiu de 2 mil litros por segundo para menos de 300 litros por segundo durante a estiagem.
Proteção ambiental e os reservatórios de água
Outra saída é o reaproveitamento de equipamentos instalados no passado e desativados por causa da modernização do sistema. Caso de reservatórios históricos, construídos no início do século passado, e reativados pela Companhia. A água acumulada em meio à exuberância da Serra do Mar está sendo direcionada para represas que integram o sistema de abastecimento de Curitiba.
A Serra do Mar é o grande berço das águas na região. A maior parte do abastecimento na capital tem origem nesse imenso colchão de terra úmida formado pela Mata Atlântica preservada. As nascentes do rio Iguaçu, que corre em sentido ao interior do continente, estão nesse conjunto de vales e montanhas.
E desde o começo do século passado os moradores da capital se beneficiam com essa água diretamente nas torneiras.
A inauguração do primeiro de 17 reservatórios, hoje conhecidos como Mananciais da Serra, em Piraquara, foi em 1908. Mas o sistema deixou de operar com a capacidade total 1950, época em que foram instalados sistemas de captação mais modernos e mais próximos da população curitibana.
Mas parte dos mananciais continuou mandando água para o lado leste. E com a baixa demanda no litoral nesses meses de inverno, engenheiros da Sanepar voltaram a trabalhar na região. Assim, ligações que estavam fechadas há décadas foram refeitas. A água voltou a ser canalizada dos reservatórios históricos para abastecer parte da capital.
Reservatórios tem mais de um século. Foto Gislene Bastos Nascente do rio Iguaçu na região da represa do Carvalho. Foto Gislene Bastos Água em movimento nos Mananciais da Serra. Foto Gislene Bastos Água armazenada em reservatórios no meio da Serra do Mar. Foto Gislene Bastos Transferência de água entre os reservatórios segue um sistema da Roma Antiga. Foto Gislene Bastos Tubulação dos Mananciais da Serra voltou a mandar água para Curitiba. Foto Gislene Bastos
São mais 40 mil litros por segundo no sistema da Região Metropolitana. Resultado de um modelo de conhecimento com tecnologia que veio da Roma Antiga. Pelas tubulações centenárias a água vai passando de um reservatório para outro e outro, até chegar à barragem principal.
O professor Eduardo Vedor de Paula, pesquisador do Setor de Ciências da Terra, Departamento de Geografia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), estuda a produção de sedimentos na área de drenagem da Baía de Antonina, no litoral, e destaca a importância da Serra do Mar para a regulação das chuvas e reservas de água na região.
A água enviada pelos Mananciais da Serra é suficiente para abastecer 25 mil pessoas. Num universo de 1,5 milhão de habitantes a contribuição parece pequena, mas somada às outras iniciativas da Sanepar ajuda a aliviar a secura que tomou conta das cidades e área rural.
Os serviços da floresta em pé
Em se tratamento do abastecimento de água potável para a população, as perspectivas não são animadoras. Estudos do Sistema Meteorológico do Paraná (Simepar) indicam que a estiagem no Estado pode se manter até fevereiro de 2021. A recomposição dos reservatórios da Sanepar deve iniciar apenas com a chegada das chuvas de verão, a partir de dezembro. Hoje, esses reservatórios operam com um terço da capacidade na Região Metropolitana de Curitiba.
O diretor-presidente do Simepar, Eduardo Alvim explica que são necessários “pelo menos três meses de chuva dentro ou acima da média para conseguir recompor os níveis dos mananciais”. Mas, tem a preocupação com o fenômeno La Ninã, que pode se formar no início do ano que vem, e pode atrapalhar ainda mais a recuperação dos níveis de água nos reservatórios. La Niña se caracteriza pelo resfriamento das águas do Oceano Pacífico e pode trazer como consequência um verão mais seco por aqui, justamente quando são esperadas as chuvas mais intensas. “Se a estiagem se prolongar para o verão, as consequências serão muito graves”, afirma Alvim.
Além dos cortes no abastecimento de água para a população, a falta de chuvas compromete as relações ambientais, aumenta o risco e dificulta o combate às queimadas, provoca doenças, especialmente do sistema respiratório, por causa da redução da qualidade do ar, e impacta a economia com perdas na agricultura e pecuária, no fornecimento de energia, na produção industrial e até nos custos para tratamento da água por causa da morte de peixes. Está tudo relacionado.
O ambientalista Juliano Dobis, diretor executivo da Associação MarBrasil, organização não governamenta com sede em Pontal do Paraná, no litoral, convive todos os dias com famílias que dependem diretamente dos recursos naturais gerados pela natureza preservada. Ele vê uma ligação direta da atual crise hídrica no Paraná com a redução das florestas nativas no Estado e também com as queimadas na Amazônia.
Pela classificação internacional do Índice Padronizado de Precipitação as regiões Oeste, Central, Sul, Centro-Sul, Região Metropolitana de Curitiba e o Litoral vivem uma estiagem extrema, a maior em 50 anos. Julho foi o mês mais seco com chuvas abaixo dos 20 por cento da média histórica em praticamente todo o Paraná.
Atualmente, cerca de 750 mil pessoas deixam de receber água nas torneiras a cada dia por causa do rodízio no abastecimento, segundo a Sanepar. E o sistema que contabiliza os atendimentos do Corpo de Bombeiros do Paraná contabiliza 6.640 incêndios em vegetação desde o começo do ano. Só em julho foram, 788 ocorrências no Estado. No ano passado inteiro foram 12.719 focos de incêndio, o que coloca o número atual ainda dentro da média.
Na área de geração e distribuição de energia elétrica não há cortes, mesmo com o nível dos reservatórios da Copel e Itaipu bem abaixo do normal. O fornecimento foi mantido com o uso da energia gerada em outros Estados por meio do Sistema Interligado Nacional, que permite a troca pelas redes de transmissão.
Floresta é motor da vida sempre ligado
A Serra do Mar tombada inclui ambientes de floresta com araucária, campos de altitude, matinha nebular, floresta atlântica de encosta, floresta atlântica de planícies. E a faixa litorânea ainda conta com restinga, manguezal, estuário e área marinha. Esse conjunto de ambientes naturais distintos forma a diversidade biológica de ambientes inseridos no tombamento da Serra do Mar e explica a grande riqueza e diversidade de espécies que ocorre na região. Justamente o que o tombamento teve a intenção de proteger.
Especialista em ecologia, a professora Márcia Mendes Marques, do Departamento de Botânica da UFPR, destaca que, por ser área muito montanhosa, a presença humana nunca foi muito significativa na Serra do Mar, o que permitiu a sua preservação. “Aproximadamente 75% da Serra do Mar é florestada, algumas áreas quase primárias e com pouca interferência humana. E outras com algum tipo de perturbação no passado e onde a floresta se recuperou, contém a mata atlântica em bom estado de conservação.”
Historicamente, toda a região da Mata Atlântica foi muito explorada ao longo da costa do país. Já essa faixa, no litoral norte do Paraná e sul de São Paulo, o Lagamar, se manteve mais intocada. E se consolidou como das mais importantes em termos de biodiversidade e serviços para os seres humanos. O processo ecológico é único no mundo. Há uma perfeita interação e interdependência entre os ambientes, com espécies endêmicas, que só ocorrem nessa área, ameaçadas de extinção.
Estima-se que atualmente restam apenas 12,4 por cento da floresta que existia originalmente. Se a avaliação for em fragmentos bem conservados, acima de 100 hectares, o percentual fica em torno de 7 por cento da Mata Atlântica original em todo o Brasil. O bioma se estende por 17 estados, sendo o lar de 72 por cento dos brasileiros e concentrando 70 por cento do PIB nacional. Manter esse motor em boas condições de funcionamento depende de instrumentos legais de proteção e fiscalização.
O poder das medidas legais de proteção ambiental
Uma data muito comemorada. 13 de agosto de 1986 marca o reconhecimento da relevância ambiental, econômica e social do conjunto Serra do Mar e Lagamar no Paraná. Mas para chegar ao registro no Livro Tombo Arqueológico Etnográfico e Paisagístico do Paraná foi uma longa luta da sociedade civil organizada. As negociações começaram efetivamente dois anos antes com a realização de campanhas populares que uniram ambientalistas e representantes políticos.
Em 1984, o Consórcio Mata Atlântica entre os Estados de São Paulo e Paraná, buscava proteger as áreas de estuários e pescados do risco de consequências desastrosas que a instalação de empreendimentos empresariais poderia causar para a economia de base nas comunidades. Projetos de grandes obras na região, como abertura de estradas e a instalação de duas usinas nucleares no litoral: Juréia/SP e Guaraqueçaba/PR ligaram o alerta. Empresários e governos temiam que o corte de vegetação e a ocupação de encostas causasse deslizamentos de terra, fechamento de portos e interrupção na pesca. E foi nas conversas do Consórcio que foi traçado o plano de proteção da Serra do Mar. O tombamento ocorreu primeiro na área paulista.
No Paraná, o reconhecimento teve pelo menos três etapas. Em 05 de junho de 1986 o então governador José Richa decretou o Tombamento da Serra do Mar. Em 25 de julho o Conselho do Patrimônio Histórico e Artístico do Paraná, em reunião extraordinária, e atendendo reivindicação do Conselho de Desenvolvimento do Litoral, fez alterações no texto original, mas votou pela manutenção do Tombamento – que acabou sendo confirmado no registro do dia 13 de agosto. 386,5 mil hectares ganharam a proteção oficial, área que se estende por onze municípios da faixa leste do Estado.
Técnico da coordenação de Biodiversidade da Secretaria de Meio Ambiente do Paraná, Paulo Roberto Castella relembra aquele período de muitas novidades. “Com o tombamento e o reconhecimento da importância para desenvolvimento econômico do litoral, a Agência Alemã (AFW) aportou recursos para implementação das medidas. Logo em seguida foram criadas as Unidades de Conservação. O Banco Mundial financiou o controle e a fiscalização. E depois, em 1991, veio o título de Reserva da Biosfera.” O reconhecimento internacional da UNESCO, confere à faixa litorânea entre o Rio Grande do Sul e o Espírito Santo como essencial para o desenvolvimento local das comunidades.
Ao longo de mais de três décadas, novas ações buscaram proteger a Serra do Mar – como o reconhecimento em 2006, pelo governo federal, do Mosaico de Áreas Protegidas do Lagamar, com 58 Unidades de Conservação no Paraná e São Paulo. Atualmente, a área total protegida sob responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade – ICMBio na vertente leste da Serra do Mar, soma 355 mil hectares. Isso equivale a oito vezes a área do município de Curitiba. São sete unidades de conservação.
O Parque Nacional Marinho das Ilhas Currais, em 2013 e o Parque Nacional Guaricana, em 2014, foram as últimas unidades federais criadas – e tem proteção integral dos recursos naturais. “Essas áreas de uso mais fechado, onde não pode haver exploração dos recursos, prestam serviços ecossistêmicos essenciais ao restante das áreas onde ocorre o uso. São berçário para a pesca, como os manguezais. Já na área de serra, a proteção das florestas garante o fornecimento de água para a população e retém sedimentos que seriam levados para o mar comprometendo a navegação”, explica o analista ambiental Aroldo Correa da Fonseca.
Antes do Tombamento, a região tinha apenas duas Unidades de Conservação federal. A Estação Ecológica de Guaraqueçaba conta com 5 mil hectares de proteção integral. Já a Área de Proteção Ambiental de Guaraqueçaba é uma reserva com 213 mil hectares de uso sustentável. Está dentro da APA o Pico Paraná, ponto mais alto do Estado, com 1877 metros de altitude. Em nível estadual, a primeira legislação a proteger a região é de 1984 e criou a Área Especial de Interesse Turístico do Marumbi, onde hoje encontra-se o Parque Estadual do Pico do Marumbi.
O Tombamento da Serra do Mar foi o instrumento legal que permitiu nos últimos 30 anos a criação de Unidades de Conservação restritivas nos ambientes terrestre e marinho, garantindo a continuidade de um ecossistema fundamental para a vida.
A proteção da Serra do Mar e a geração dos recursos naturais, como a água, estão sob ameaça?
A proteção da Serra do Mar inclui toda a região de serra e mar entre o Rio Grande do Sul e Espírito Santo, em diferentes níveis. Mas as ameaças permanecem com a exploração irregular dos recursos naturais, como o corte de árvores, retirada de palmito, caça, mineração e diferentes formas de poluição. Só a ação dos agentes de fiscalização não é suficiente.
Segundo os ambientalistas, falta investimentos mais consistentes como o sensoriamento remoto e o cadastro ambiental efetivo. “Embora a gente tenha muitas áreas protegidas em toda a Serra do Mar, existe necessidade de mais pessoas fiscalizando essas áreas. Precisaria mais gente e mais investimento”, reforça a professora Márcia Mendes Marques.
Entidades que trabalham em defesa do meio ambiente denunciam o risco contínuo. Diretor executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental – SPVS, Clóvis Borges, lamenta as perdas que os órgãos ambientais têm sofrido. “A simplificação, a estadualização e a municipalização do licenciamento são estratégias para enfraquecer os processos. Isso não é bom para a sociedade, nem é de interesse público.”
Entre as dezenas de projetos de investimentos na região, um se destaca. A construção do Porto Pontal Paraná, no litoral paranaense, chegou a ter as obras suspensas por liminar. Mas, recebeu em junho, a garantia do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) para ter continuidade. O órgão negou recurso em ação popular que pedia a manutenção de liminar que suspendeu a licença de instalação do empreendimento portuário.
Na decisão, o TRF4 entendeu que o componente indígena do estudo de impacto ambiental foi cumprido. Além da empresa Porto Pontal, responsável pelo projeto, foram incluídos como réus a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Instituto Ambiental do Paraná (IAP) e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), suspeitos de ausência ativa no processo licitatório da construção.
Projetos de grandes empreendimentos econômicos trazem junto grandes impactos ambientais. Para Clóvis, qualquer licenciamento nessa região tem que contemplar o fato de ser uma área frágil. “O tombamento foi recado para que se encare a serra como o que é, especial, e não pode ter investimentos superiores ao que a área pode receber. E estamos na iminência de cometer esse erro.”
O uso tem que ser cirúrgico, pontual e que gere economia sem destruição. O desafio se mantém ainda mais atual que há trinta anos, quando a Serra do Mar foi tombada com a meta de conservar a capacidade de geração de recursos naturais, como a água.